terça-feira, 4 de dezembro de 2012

‘Vivemos como prisioneiros’, diz mulher que mora dentro de complexo prisional



Vizinhas de 17 mil presos, 16 famílias vivem no Rio com celular bloqueado, não podem tirar fotos fora de casa e têm suas visitas revistadas por agentes penitenciários


“Já tive minha casa revistada 12 vezes sem mandados judiciais. Abro a porta porque não devo nada. Da última vez, entraram 21 homens às 6h05, saíram às 11h45 e nada encontraram”, conta o comerciante Héber da Silva Vilela, de 60 anos, único entrevistado nesta reportagem que não pediu para ter sua identidade preservada. “Não tenho nada a temer”, diz. A revolta é compartilhada pela sua vizinha, a vendedora ambulante N., que também já passou por problemas na localidade. O episódio mais significativo ocorreu em janeiro de 2003, quando foi acordada por 30 detentos, que, em fuga da Casa de Custódia Pedro Melo da Silva, passaram correndo por seu quintal. “Parecia uma cavalaria”, relembra.

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As famílias de Hé fluminense. A área de segurança é composta por 23 presídios, entre eles Bangu 1, 2 e 3, carceragens que já receberam Fernandinho Beira-Mar, o goleiro Bruno e o ex-banqueiro Salvatore Cacciola. Atualmente, o traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, está entre os 17 mil detentos que cumprem pena no local.
ber e de N. são duas das 16 que moram em uma vila residencial localizada dentro do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, zona oeste da capital

Com uma vizinhança atípica, essas 16 famílias convivem diariamente com a insegurança de que um dia possam ocorrer novas fugas e rebeliões e com algumas restrições impostas pelo sistema carcerário. Mas nem sempre foi assim. Em 1957, quando foi construída a primeira penitenciária do complexo, as pessoas já viviam no local. Com o passar dos anos, o número de presídios foi crescendo. Devido à nova organização, o espaço passou a ser cercado por muros e guaritas e os moradores da vila residencial ficaram lá dentro.



Fotos proibidas e sinal de celular bloqueado

Por questões de segurança, os moradores têm que ir até a guarita de entrada do complexo penitenciário para receber suas visitas, que passam por revista. Como o sinal de celular é bloqueado dentro da área de segurança, para evitar o contato de detentos com pessoas de fora, receber um convidado é às vezes uma tarefa complicada. “Uma vez uma amiga veio me visitar e ligou para meu celular para eu vir buscá-la, mas a ligação não completou. Quando vi a chamada perdida, ela já tinha voltado pra casa”, relata N.

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Tirar fotos fora das casas ou dentro delas em lugares que vão deixar aparecer a área externa do complexo, como janelas, por exemplo, também são proibidas. "Minha filha de 14 anos foi tirar uma foto para a igreja que frequenta em um parquinho que existe dentro do complexo e um agente a proibiu. Mandou apagar todas as imagens, senão tomaria a máquina dela", diz L., que vive lá há 20 anos.


Não bastassem essas normas, até poucos meses atrás os moradores eram revistados todas as vezes que entravam ou saíam do complexo e, além disso, um agente penitenciário ficava 24 horas por dia na porta de cada residência. Tais medidas foram abandonadas após reclamações dos moradores. “Acordava cedo e dava de cara com um guarda olhando para minha casa. Era muito constrangedor”, conta L. “Uma vez revistaram meu filho de 15 anos porque ele tinha abaixado para amarrar o cadarço. Cismaram que estava com algo e abaixaram a sua roupa. Não falei nada porque fiquei com medo de fazerem algo, mas tinham que ter me chamado antes de revistá-lo”, reclama N.

Indignadas com a situação, as famílias querem ser indenizadas pelo governo estadual do Rio, responsável pelo Complexo Penitenciário de Gericinó, para poder morar em outro local. “Vivemos como prisioneiros. Preferia que nos indenizassem e tirassem a gente”, opina a vendedora ambulante. “Por diversas vezes, o governo prometeu uma indenização. Minha casa precisa de obra, mas não quero investir um dinheiro e depois ter que sair”, completa.

Desapropriação das casas

Procurada pelo iG, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) informou em nota que já foi encaminhado “um processo ao Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj) solicitando a desapropriação das casas construídas no Complexo de Gericinó, em Bangu, por se tratar de uma área de segurança”. Segundo o comunicado, “tão logo concluído o processo de desapropriação, as partes interessadas serão indenizadas”. Os trabalhos, no entanto, não possuem um prazo para conclusão.

Para a professora de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rosângela Maria de Azevedo, ao deixar essas famílias morando lá, o governo estaria descumprindo a função social da propriedade pública ao criar obstáculos no entorno para que as 16 famílias levem uma vida normal. “Quando todos foram morar ali, não havia um complexo penitenciário. Alguém falou com elas? Não. Escolheram aquela área e começaram a construir, gerando, inclusive, uma desvalorização das propriedades”, avalia Rosângela.

Em meio a esse conflito, o comerciante Héber da Silva Vilela diz esperar por uma solução o mais rápido possível. “Eu tinha um comércio lá dentro junto com a minha casa e me proibiram de trabalhar. Se essa atitude foi tomada, também não estou apto a morar lá”, opina ele, que vive no complexo há 30 anos. “Não tenho nada contra o sistema, só que ele tem uma ordem e minha vida tem outra”, justifica.



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